No dia 3 de fevereiro de 2025, em Paris, tivemos a Soirée da l’AMP, inaugurando o trabalho em direção ao XV Congresso, que acontecerá em Paris, na primavera de 2026, sobre o tema “Não há relação sexual”. A apresentação será feita por Ricardo Seldes, diretor do XV Congresso da AMP.
O desafio com o qual a AMP nos confronta, o de apresentar o próximo Congresso cujo título é um aforismo, nos remete aos excelentes resultados dos dois últimos. Trata-se de uma frase curta, que não chega a ser um haicai, mas sim um compactado de saber criado e pronunciado por Lacan em diversas ocasiões. O próximo Scilicet dará conta de cerca de vinte deles.
Podemos considerar a possibilidade de rastrear suas origens, tanto no percurso do ensino de Lacan como nas construções freudianas, que conseguem nosremeter às consequências lógicas derivadas do aforismo Não há relação sexual, a fim de nos perguntarmos como Lacan afirmou, negou e distribuiu os desenvolvimentos de Freud e os seus próprios para concluir com um dizer preciso e sempre em movimento, posto em questão.
Um mistério generalizado
Não há relação sexual é a expressão enunciada de um mistério que afeta a vida de todos os sujeitos falantes sobre sua concepção, sobre sua existência e, por que não, sobre sua morte.
A proposta do próximo Congresso da AMP 2026 é a de nos munirmos de elementos que nos ajudem a recordar este aforismo não para repeti-lo como um mantra, mas para interrogá-lo, reter suas coordenadas e transformá-lo em um working-progress, no qual seu uso possa ser provado ou refutado na nossa prática clínica atual. Estamos advertidos de que a referência ao tempo presente não deixa de lançar-nos em um paradoxo, talvez o mesmo de Zenão, pois a cada vez que corremos atrás dele, e precisamos de cortes lógicos para chegarmos a momentos conclusivos, nos vemos afetados pelas vicissitudes as quais o discurso do mestre de cada época nos arrasta. Dizer arrastados pode soar um pouco cinematográfico, numa época em que as séries de streaming do tipo catastróficas se destacam, visando colocar os sujeitos diante de evidências no que concerne à discussão sobre a crença ou descrédito nas mudanças climáticas enfrentadas por nosso planeta, nosso habitat.
O discurso analítico hoje
Para Lacan, o mundo belo e imundo, do qual fazemos parte, surge do inconsciente que fazemos existir na prática analítica. O dizer de Freud se infere da lógica, que está na fonte do dito do inconsciente. Enquanto Freud descobriu este dito, ex-siste o que Lacan antecipou e localizou em “O aturdito”, o estabitat dos falasseres , porque, cito: “Será a ausência dessa relação que os exila em estabitat [stabitat]?”.[1] É pelo discurso analítico e em sua experiência que, “Restituir este dizer é necessário, para o discurso se constituir da análise (é nisso que ajudo), a partir da experiência em que confirma-se e existência dele”.[2] “Será forabitalo [d’labiter] que essa relação só pode ser inter-dita?”,[3] entredita. O real do inconsciente será o corpo falante.
No mesmo texto, Lacan mencionará as voracidades com as quais se tampona a inexistência da relação sexual, para assinalar que o discurso analítico procura dar conta de tais voracidades. O hábitat da linguagem oferece, mediante lalíngua de cada um, os recursos e as dificuldades para sofrer ou gozar das sexualidades, para desejá-las ou rechaçá-las, para sonhar com elas ou afundar-se em seus recantos mortíferos. Sexualidade e morte são os dois impossíveis freudianos, cuja resolução apela ao domínio pulsional.Com o que a clínica do primeiro quarto do século XXI nos faz deparar, reestruturada pelas consequências da combinação do discurso científico com o discurso capitalista, que modificaram de tal maneira as tradições, costumes e hábitos que, em poucos anos, produziram intrépidos furosno simbólico? Esses vazios são suplantados pelos objetos-órgãos, em torno dos quais pode sustentar-se um vínculo fraturado nos laços, nas parcerias, nas famílias, em que a palavra vale menos que qualquer aplicação digital.
Recentemente trabalhamos sobre sobre o tema “Todo mundo é louco, quer dizer delirante”,o quefaz apelo aos saberes de todos os falantes a respeito da mesma carência, no que concerne à sexualidade. Temos, assim, dois aforismos que, juntos, contêm um saber produzido na experiência analítica, na qual se pode transmitir os resultados da desordem no real da época, na qual se constituiu uma nova ordem, com consistências de ferro e de plástico, cujas crenças podem ser interrogadas por nós.
Lacan afirmou que o seu n’y a pas – mescla do “não há” e uma negação – não impede que os sujeitos se aproximem dos corpos dos outros para fazer amor, apoiados em seus fantasmas, isto é, na modalidade que cada um consegue inventar. Trata-se de companheiros-companheiras, pessoas que se localizam de um lado ou de outro das tábuas da sexuação, que ainda valem para os que se proclamam sem sexo, contrasexo, antisexo e deliram sobre variados modos de se denominarem, fora das normas. A sexualidade causa problemas e outorga soluções.
Todos aleijados sexuais
Procuramos argumentar sobre o aforismo e, para tanto, nos aproximamos de diferentes maneiras: podemos tomar partes de ditos, fazer alusões a casos, recordar referências a momentos da civilização, nos quais isso está em jogo de forma mais evidente. Retornemos às perguntas que buscam encontrar respostas parciais ao que chamamos de o impossível, o real do sexo.
Há um texto de Freud, de seus primórdios, no qual ele se interrogou acerca da etiologia das psiconeuroses e situou, com toda premeditação, a causa sexual como a origem dos sintomas. Ocupou-se com o que chamava de neurastenia, definindo-a como de índole atual e sem uma referência à naturezainfantil, como nas neuroses. Sem descuidar dos casos mistos, diferenciou-os assinalando o excesso de satisfação autoerótica que ele podia escutar nas neuroses atuais, enquanto nas outras a etiologia se referia, pelo contrário, à repetição da contenção ou insatisfação do gozo sexual. Recordemos que sua tese essencial era que a angústia é, em geral, libido desviada de seu emprego.[4] Contava, segundo suas palavras, com um extenso arquivo de casos na exploração de una terapêutica desejável, e assegurou a Fliess que, no caso do excesso das neurastenias, isso tendia a desembocar em sua conclusão de que não se tratava de vítimas da civilização ou de herança, senão que “-‘sit venia verbo’ [desculpe-me a expressão] – [trata-se de] aleijados sexuais”[5]. Freud utiliza a expressão Sexualkrüppeln, em que krüppeln aponta os inválidos, os aleijados. É uma palavra cuja etimologia chega quase sem modificações do baixo alemão médio, kröpel , “o encurvado”, em sua raiz protogermânica reconstruída, krupilaz, que indica “inclinado a arrastar-se”. A palavra também se aplica a pessoas que têm desenvolvido um hábito indesejável e do qual não podem se desprender, alude a um gozo excessivo, impossível de ceder, que limita o vínculo com o Outro. É interessante captar como esse artigo de 1898 produziu, no próprio Freud, uma sensação de grande incômodo, pelo escândalo que ele sabia que iria produzir ao falar tão abertamente dos masturbadores e dos homens, mulheres e casais que se infligiam insatisfação sexual. Os variados sintomas provocados por essas disfunções os transformavam em Sexualkrüppeln. Em um artigo que qualificou como Gartenlaube, escreve a Fliess, título de uma revista para o lar que havia se tornado célebre por suas histórias sentimentais, porém completamente estranho ao estilo da publicação, por tratar tão abertamente e de forma desavergonhada de um tema que ele mesmo entendeu como destinado a provocar um escândalo e não somente na ciência da época. Sexualkrüppeln, aleijados da sexualidade e Gartenlauben, gazebo de jardim, são dois significantes que dizem algo mais sobre os textos de Freud que virão na sequência: “O mecanismo psíquico do esquecimento”, em que se refere ao caso Signorelli e “Lembranças encobridoras”. Sexualidade e Morte. O Herr está no limite do dizível, quando se trata do suicídio de um paciente devido a impotência sexual. Herr é o absoluto, a morte “a qual não se pode olhar fixamente”.[6]
O saber e as crenças
Obtemos um saber na experiência analítica sobre a relação sexual? Com Lacan, aprendemos que há uma presunção que pode se constituir como um saber da verdade.[7]
Quando a verdade toma a forma jurídica e se pede a alguém que diga toda a verdade sobre o que sabe, já não se faz isso com o conhecimento de que se trata de uma demanda impossível, exceto pelo fato de que se busca captar algo da enunciação em jogo? É a demonstração de uma vontade de julgar o concernente ao gozo, que se confesse o gozo, justamente porque é inconfessável. Não há relação sexual nos confronta com a evidência de que o gozo somente se interpela, se evoca, se assedia ou se elabora a partir de semblantes, o que inclui o ser, o crer-se ser, mas também o amor com suas perguntas infinitas. A questão se desloca para como alcançar o verdadeiro senão por vias torcidas.
Dizer Não há relação sexual é uma verdade a seco (a secas)? E que não pode ser escrita. É um axioma do qual partimos ou é um ponto de chegada para cada analisante, que decidiu comprometer-se com o discurso analítico? Aceitamos que o saber vale e tem um preço, e que é preciso arriscar a própria pele, porque é menos difícil adquiri-lo do que gozar de seu exercício. Talvez a disseminada prática efetiva do incesto, generalizada hoje como abuso sexual infantil, lance alguma luz sobre as consequências nos sujeitos prejudicados por essa prática desprezível.
Para Freud, o inconsciente é um saber que não se sabe, mas que pode ser decifrado, lido e talvez sua maior utilidade seja que ele serve para fazer falar. Quiçá haja algo disso naquilo que se atribui ao inconsciente nas mulheres, que podem fazer falar e obter disso seu gozo. Tal como Silvia Tendlarz recorda, se alguém elege como sintoma uma mulher que nos fala, se crê nela, então o sintoma se faz falante e pode ser escutado.[8]
Chama nossa atenção quando Lacan diz que a vida reproduz, ele assinala que a “resposta só questiona ali onde não há relação para sustentar a reprodução da vida.”[9] É claro que perguntarmos isso é um modo de aceder àquilo que não há nos falasseres. O próprio inconsciente pareceria ser uma maneira de cifrar a não resposta e, como nos demostra o conto Chapeuzinho vermelho, sua resposta será: “Para te fazer falar”, forma de demandar o banquete mortífero, para comer-te melhor, para matar-te melhor. Lacan pretende obter duas metades que não se enredem demasiado no ato sexual, quando conseguem chegar a ele, o que nem sempre é possível pelo complicado que pode ser o acesso ao corpo de uma mulher.
Se “o corpo dos falantes está sujeito a ser dividido por seus órgãos [… é] para ter que lhes encontrar uma função[10]”, assinala Lacan. Isso nos coloca em certa proximidade com a psicose, mas também pelo fato de que um órgão, o masculino, se faça significante, se faça o falo, para servir de isca na função que lhe delega o discurso. Não há falo sem um discurso que o sustente. E Lacan lhe dará duas características: a de fânero, graças a seu aspecto de aditamento móvel que se acentua por sua eretilidade, e a de anzol para pescar todas essas voracidades. Temos, aqui, o traço pulsional com que se tampona a inexistência da relação sexual. “Esse órgão, passado ao significante, escava o lugar a partir do qual adquire efeito, para o falante”[11]. Ele concluirá assinalando que ser ou ter o falo é a função que supre a relação sexual, com o que elaborará as fórmulas da sexuação.
Trata-se, então, da questão da defesa contra o real e do limite do dizível. Que crenças, que formas terão no futuro as perguntas sobre a concepção quando, graças ao avanço das técnicas procriativas, esse objetivo se cumprir por vias tão dissimiles e inovadoras para realizar o desejo de conceber um filho? A prática analítica permite nos aproximarmos dos casos em que poderíamos verificar a existência dos mitos atuais sobre a chegada ao mundo. Conhecemos a importância que tem para Lacan o fato ter sido ou não desejado por alguns dos que se chamam mãe ou pai. De que maneira influi nas crianças o uso massificado e permanente dos gadgets que os conecta diretamente com o saber universal, fake ou não? O que proporciona aos adolescentes, e não tanto, o gozo direto de cenas de sexo pornô brutais, facilmente accessíveis em seus celulares tão assustadoramente próximos, diretos e companheiros das crescentes solidões? Quão isoladas e ingênuas se mostram essas buscas em livros, imagens e dicionários de palavras pesadas, que podiam aproximar-nos dos segredos imaginados de cegonhas que vinham de Paris? Na língua, algo da verdade sempre escapa, ainda que se trate da popularização do conto de Hans Christian Andersen.
Que tipo de saber é a crença que nos faz buscar sua relação com a convicção, com a incredulidade, com a dúvida e com a certeza? Contamos com o volume da coleção Ornicar? chamado “Creer”, onde Deborah Guterman nos recorda que, para Lacan, a crença supre a ausência da relação sexual e, por este fato, mascara a morte, trabalha para a eternidade.[12] No citado exemplar, François Leguil assinalou que as certezas transmitidas pela ciência não requerem o compromisso de nossa fé, e, assim, as distinguimos da certeza na psicose.[13] Lacan, em seu Seminário, livro 3: as psicoses, se referiua uma crença universal em Papai Noel, que implica que o amanhã será melhor do que o presente. Quando recomenda interpretar do pai ao pior, já não será uma crença, mas sim uma aposta em um operador que não se funda na sugestão, mas sim no objetivo da certeza, a localização pelo próprio sujeito da determinação real de sua divisão, porque é uma certeza ligada a um impossível de dizer incrustada em nosso corpo.
O sintoma como partenaire
Considero, assim, que o ponto determinante em nossa clínica, baseada nas consequências do aforismo Não há relação sexual, é o que J.-A. Miller anunciou – e, do meu ponto de vista, foi um achado sensacional -, sua leitura do sintagma partenaire-sintoma e as enormes possibilidades de seu uso. A primeira consequência é a questão com a qual nos encontramos ao perguntar o que implica ser lacaniano hoje. E Miller dá uma resposta simples em sua grande complexidade: é ter de se virar sempre com um problema da articulação entre a libido e o simbólico.[14] Os lacanianos, diz ele, estão enrolados com isso, com a pergunta: como se passa do significante ao gozo? E aí contamos com o sintoma como aquilo que serve ao gozo do corpo vivo.
Se partimos da antinomia entre o sentido e o real, não há relação entre eles, salvo uma infração, a do sintoma. E, desde que Freud alertou que se trata de uma substituição de uma satisfação pulsional, podemos afirmar que vem no lugar do objeto que seria aquele que conviriaà pulsão que, embora busque seus objetos no campo do Outro, é sempre autoerótica. Desse gozo, segundo Freud, é preciso defender-se porque ele põe em perigo o princípio da homeostase.
Se a ausência de relação sexual é o que torna necessário o discurso, se se trata de um tamponamento significante, que tipo de laço é o do analisante-analista, para nos permitir aceder ao real que estabelece o incomensurável, o indizível, naquilo que esse laço situa como sintomático, nessa relação fundada no amor e no suposto saber? Uma relação de palavras e de silêncios que deixa o sexual de fora, mesmo que somente se fale das complicações lógicas e reais dessa falta de relação.
O amor cortês como artificio misterioso
Isto nos conduz ao dizer de Lacan sobre como o real, ao qual estamos aludindo, tem deixado seu sedimento no curso dos séculos. E tem sido através de lalíngua que estas marcas têm se constituído. Tomaremos, para esta apresentação, uma criação que foi outra referência importante para Lacan.
O amor cortês é a invenção literária, poética e musical própria dos troveros e trovadores das cortes occitanas do século XI. Sua produção introduziu importantes mudanças na sociedade dos séculos seguintes. Do occitano Fin’amors, amor perfeito, esta literatura que originariamente se dirigiu a um público da corte, passou a ser parte da vida de todos. Evocava ao mesmo tempo a cortesia requintada e o refinamento próprios da sociedade aristocrática, e seu contrário, uma maneira crua de utilizar os significantes referidos ao amor enquanto proibido e oculto, idealizado, humilhante e exaltante, excessivo e poético, erótico e descarnado. É um amor que exige do homem ser amante e servil, ao passo que a mulher é levada à categoria de dominante e indulgente.
Suas consequências perduraram durante centenas de anos. Consistem essencialmente em despojar do amor seu conteúdo sexual, procedimento pelo qual a relação sexual deixa de ser impossível de ser inscrita. Se a contrario sensu partimos da afirmação de que o gozo é o obstáculo sem salvação para que a relação sexual possa inscrever-se de alguma maneira, isso assinalaria que o amor cortês é um artifício para se haver com dito gozo. Um artifício misterioso. Lacan disse que o amor cortês é um amor a “seco” (a secas) em um estilo de laço espiritual, embora impuro. Lacan estudou os trovadores e assinalou que este amor surgiu numa época em que “se trepava, contudo, firme e forte, quero dizer, em que não se fazia mistério disso, em que não se dizia meias palavras”.[15] Este amor é tão herege como os trovadores, que o enalteceram na época dos cátaros. Trata-se, assim, de una posição que respeita os semblantes, uma vez que as boas maneiras são o semblante requerido em torno da falta: não existem outras boas maneiras senão as que rodeiam o furo, índice de real. Não implica o sacrifício profundo do nada que se demanda na prova de amor, é delicado e sutil, e, no entanto, produz efeitos reais. Deste modo, ele compartilha com o real algo de seu estofo, a erotomania assim o demostra.
O segredo do sexual
Assim como existem as palavras proibidas, ou as que ferem, as que matam, as que ofendem, as que irrompem como parasita no dizer cotidiano, em ditos contingentes que deixam uma marca de gozo também estão as palavras mais privadas, talvez as mais secretas, as que acariciam, as que seduzem, as que são necessárias e levam alguém a obter o máximo prazer sexual. Ou o impedem.
Nesta época do mostrar tudo, o que permanece como segredo? Quais invenções sustentam a prática do sexo, desde que possamos sustentar que se trata de um segredo que vale tanto para aqueles que a realizam como para aqueles que não a realizam? O que acrescentaríamos agora sobre a prática analítica com sujeitos neuróticos que, como recordou Dalila Arpin ao finalizar o Congresso passado, evitam o encontro com o Outro sexo? Conhecemos bem a dificuldade do fóbico para expor-se ao Outro, assim como o prazer da histérica de contar suas aventuras a suas amigas no lugar de vivê-las, e porque não falar da confusão do obsessivo, incomodado por suas infinitas dúvidas… No fundo, diz Lacan, o único quarto onde se chega, porém onde não acontece nada, onde “o ato sexual se apresenta como uma foraclusão…[16]” é o consultório do analista.
Jean Pierre Deffieux, na mesma mesa de encerramento, assinalou o seguinte: “Hoje em dia, o falo é substituído cada vez mais frequentemente por objetos mais de gozar, para os quais não se convoca à detumescência”. Miller abordou essa questão em “O inconsciente e o corpo falante”, através da excrecência do pornô, que põe cada vez mais em jogo um gozo do objeto, mais que do órgão fálico. Os múltiplos objetos mais de gozar permitem escapar do incômodo real do órgão e crer, assim, na relação sexual. O pornô exibe de maneira banal e excessiva o que a dignidade do barroco velava, apesar de suas mostrações de corpos gozantes.[17]
Ao seguir os rastros que nos deixaram os trovadores, encontramos algumas chaves nos textos que ficaram de seus ditos. O segredo é um deles. A magia será o outro? Por que o segredo? O segredo é um saber que não se expõe, é um saber sob um véu. Há algo secreto da sexualidade para cada um e a não-relação sexual é secreta tanto para aqueles que a praticam como para aqueles que não. Jorge Luis Borges o diz muito melhor que nós em “La secta del Fénix”,[18]enquanto Lacan o referirá à sua própria clínica: “E um dos fins do silêncio que constitui a regra da minha escuta é precisamente fazer calar o amor. Não atraiçoarei, pois, seus segredos triviais e sem par”.[19]
J.-A. Miller[20] despertou o breve texto de Borges para dar conta do furo que há no que costuma ser chamado de o saber universal. É um conto erudito, com múltiplas referências sobre a antiguidade, sobre uma seita que gira sobre um saber conspirativo essencialmente velado, um segredo que divide a humanidade em duas classes distintas, os que sabem e os que não. Como costuma acontecer, o segredo para alguns o é também para eles mesmos, diz Miller. O texto se refere ao coito e consegue literariamente fazer um enigma, um saber a decifrar, algo que em grande parte pode ser comparada a uma sessão analítica.
Pode-se dizer que neste texto o fato de natureza, a obra de carne colocada em relação a uma seita se desliga por conta do semblante. E “é a condição humana como tal que parece estrangeira, enigmática, […] [que faz pensar] como pode ser que alguém se livre de algo tão incrível como é isso que se dá ao que se chama fazer amor”.[21] O Fénix não é senão o falo, o ato sexual consuma sua desaparição e o falo renasce de suas cinzas.
Em uma das palestras dadas por Lacan em Sainte-Anne, na época de O Seminário 19, ele se perguntava pelo estado atual do pensamento, não lhe interessava assinalar que as coisas sempre estiveram iguais à atualidade, ou sua atualidade, se quiserem. No entanto, indicou algo que mostrava para ele o futuro do que se considera normal em cada época. Philipe Hellebois nos recordou, ao final de sua participação de fevereiro e 2024, no final que dava início ao próximo Congresso, que Lacan afirmou que Gide queria que a homossexualidade fosse algo normal. E, em 1972, Lacan acrescentou que “nesse sentido há uma multidão”[22], referindo-se aos grupos de poder que lutavam por seus direitos.
Oque acontece cinquenta anos mais tarde? A normalidade muda no ritmo dos avanços tecnológicos, tanto do lado dos que exigem, com razão, a aceitação comunitária de suas modalidades de gozo, como se o gozo fosse algo generalizável e não singular, quanto do lado dos que não apenas resistem às novas formas evidenciadas de se haverem com a inexistência da relação sexual, senão que as perseguem, as querem castigar para, por sua vez, rechaçar o inconsciente e o “não há”. O real do vínculo social é a inexistência da relação sexual.
Sou o que digo pode encontrar formas normalizadas ou cair em extremos incompreensíveis. A reivindicação indiferenciada de direitos merece a oportunidade de interrogar as consequências do não há impossível, para que os sujeitos se subsumam sob tal o qual nome. Tal como formulado por Éric Laurent, o uso dos semblantes generalizados indica que devemos retomar esta questão a partir da pulsão em jogo, a fim de interrogar o impossível no sistema.[23] Quer dizer, interrogar a euforia da inovação dos semblantes, dado que trouxeram um ressurgimento do establishment fundamentalista das tradições, em nossa opinião cada vez mais cruel e contagioso.
Para concluir
Retomemos nosso ponto de partida para perguntarmos pela diferença entre o gozo fálico, que não se relaciona com o Outro como tal, e esse gozo diferente sintomático que, sim, sustenta o que nos é revelado do Outro. Isto quer dizer que o gozo pulsional não faz relação e que: “Se há Outro ao nível do gozo, somente se reconstitui ao nível do sintoma, e inclusive somente se reconstitui em carácter sintoma”.[24] Certamente, cabe esclarecer que o Outro ao qual nos referimos não é aquele ao qual Lacan aludia no início de seu ensino, já que este Outro implicava una exclusão do gozo.
Esta perspectiva permite tomar o desenvolvimento dos “equívocos sobre o Outro” para chegar à pergunta: por que ir falar com o analista? Que gozo se obtém ali, neste casal-sintoma, quais são suas características iniciais e como a elucidação e transmissão de uma análise, verificados pelo passe, nos ensinam sobre as modalidades singulares de chegada do final?
É possível indicar um trabalho sobre as maneiras de se constituírem os pares, segundo esta proposta de J.-A. Miller de pensá-los no amor e no desejo, no imaginário, no simbólico, no real para tentar situar a parceria de gozo.
Resumindo, o acesso ao Outro é possível através do gozo, e ele desemboca no objeto a, que revela o gozo do corpo próprio e a ele temos acesso por meio do amor, que deixa de lado o corpo e se apega às palavras.
Os dois acessos são válidos para os dois sexos, porém, aqui, Lacan pode dizer que o primeiro o é sobretudo para o macho, o acesso macho ao Outro, o acesso através do gozo; ao passo que do lado da mulher, o acesso ao Outro se realiza mais habitualmente através do amor.[25]
Este último fica do lado de um gozo aberto, sem limite.
A preparação de um Congresso de psicanálise nos abre portas, tal como o faz o início de uma análise. Nós nos valemos de nossos significantes, dos recursos do saber que temos acumulado ao longo desses anos da orientação lacaniana, para interrogar Freud, Lacan e os achados de nossos colegas na prática. Isto nos conduz a não temer as coisas novas que de repente brilham em nossas transmissões. Implica enfrentar preconceitos para que, depois de mais de um ano de investigações e discussões clínicas, esses brilhos possam fazer teoria, para voltarem a ser postos em questão e crítica permanentes.
Almejamos à nossa incipiente e transitória organização um trabalho decidido e alegre, e a todos vocês que possam encontrar como dizer suas construções, seus obstáculos, seus achados, para provocar mais desejos desta maravilhosa epidemia que chamamos de prática analítica.
[1] Lacan, J., (1972) O aturdito, (1972) In__.Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2003, p. 454.
[2] Ibidem
[3] Ibidem
[4] Freud, S. A sexualidade na etiologia das neuroses. (1898) In:__. Primeiros escritos psicanalíticos. (1893/1899) Trad. e notas: Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2023, p. 248. (Obras Completas de Sigmund Freud, 3)
[5] Ibidem, p. 240.
[6] Lacan, J. O Seminário,livro 5: As formações do inconsciente. (1957-1958).Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1999, p. 42. Lição de 13/11/1957.
[7] Lacan, J. O Seminário, livro 20: Mais ainda. (1972-1973). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p.123.
[8] Tendlarz, S., El inconsciente enamorado, Buenos Aires, Grama ediciones, 2024, p. 131.
[9] Lacan, (1972) O aturdito, op. cit., p. 455
[10] Ibidem
[11] Ibidem, p. 456
[12] Gutermann-Jacquot, D. Luminaria. Ornicar? Creer , Buenos Aires, n. 2, 2024.
[13] Leguil, F. Anatomía de una paradoja. Ornicar? Creer n.º 2, Buenos Aires, n.2, p.51, 2024.
[14] Miller, J.-A., (1997-1998) El partenaire-síntoma, Buenos Aires, Paidós, 2008, p. 47.
[15] Lacan, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. (1959-1960) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 170. Lição de 03/03/1960.
[16] Lacan J., O Seminário, livro 14 : a lógica do fantasma. (1966-1967) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2024, p. 354. Lição de 21/06/1967.
[17] Miller, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. (2016) In: O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2015.
[18] Borges, J. L. Artificios, La Secta del Fénix. (1944) In: Obras completas 1923-1972. Buenos Aires, Emecé editores, 1974, p. 522. (Tradução nossa).
[19] Lacan, J. Conferencia sobre la ética del psicoanálisis en Bruselas. (1960), 9 de marzo de 1960, inédito. (Tradução nossa)
[20]Miller, J.-A. Los usos del lapso, Buenos Aires: Paidós, 2004, pp. 29-47. Lição de 25/03/1987.
[21] Ibidem., p. 39. (Tradução nossa).
[22] Lacan, J. O Seminário, Livro 19: …ou pior. (1971-1972) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2012, p. 70.
[23] En diálogo con J.-A. Miller en (2003-2004) Piezas sueltas, Buenos Aires, Paidós, 2013, p. 397.
[24] Miller, J.-A, 1997/1998, [El partenaire-síntoma] op. cit., p. 236. (Tradução nossa).
[25] Ibidem., p. 275. (Tradução nossa).