No dia 3 de fevereiro de 2025, em Paris, tivemos a Soirée da l’AMP, inaugurando o trabalho em direção ao XV Congresso, que acontecerá em Paris, na primavera de 2026, sobre o tema “Não há relação sexual”. A Introdução à soirée por Christiane Alberti, presidente da AMP.
O título deste Congresso, “Não há relação sexual”, convoca, de início, uma observação: é a primeira vez que o termo “sexual” aparece no título de um congresso da AMP. Temos, portanto, a oportunidade de questionar o que tornou a descoberta freudiana um escândalo, mas também seu sucesso, se considerarmos que Freud contribuiu para a dissolução da moral sexual civilizada ao trazer à luz a importância do sexual na economia psíquica, a ponto de apontar a sexualidade infantil. Ele estendeu sua significação muito além da cópula animal e da genitalidade, considerando por exemplo que, na sexualidade infantil (referindo-se ao pediatra Lindner[1]), é na sucção que devemos ver o protótipo da pulsão sexual: uma reivindicação primária, primordial, de voluptuosidade, independente da necessidade vital, um estado do corpo silencioso em relação a si mesmo. Ele o escreve de modo radical em “A moral sexual civilizada”: “a pulsão sexual só faz o que lhe dá na cabeça”[2].
Desde a época de Freud, uma mudança radical ocorreu na sexualidade. A sexualidade é onipresente, tornada visível, disseminando-se por toda parte nas telas e nas redes sociais. Pouco antes de 1968, em Meu Ensino, Lacan havia enfatizado a evidência de que a verdadeira mudança está nisto: a sexualidade perdeu alguma coisa do gozo clandestino e transgressor, para dar lugar a uma sexualidade que tem “algo de muito mais público […], ao ar livre”[3]. Em razão disso, os sujeitos se veem despojados de uma parcela de intimidade e de segredo, como se fossem precipitados para fora de si mesmos, na cena pública. Isso está ainda mais presente nos dias de hoje, na época do desenvolvimento da sexualidade nos espaços digitais.
Uma pesquisa recente e muito bem documentada do INSERM, a respeito da evolução da sexualidade dos franceses de 15 a 89 anos, publicou há pouco tempo resultados dignos de serem ressaltados[4].
Os resultados confirmam, em primeiro lugar, tendências que não são novas: mudanças importantes ligadas à promoção da norma da igualdade entre os sexos e as sexualidades, e profundas transformações das estruturas familiares em um contexto no qual a lei amplia o acesso ao casamento e à parentalidade.
O mais interessante é o que está sendo apontado como novo e qualificado de “paradoxo contemporâneo da sexualidade”[5]. Este se caracteriza por uma maior diversidade da atividade sexual – aumento do número de parceiros, extensão dos « repertórios » sexuais (menos penetração e mais masturbação) –, ao mesmo tempo que uma menor frequência das relações sexuais. Essas tendências também são observadas em outros países (Alemanha, Estados Unidos, Finlândia, Japão, Reino Unido).
De certa forma, esses elementos não são estranhos ao que é encontrado, no que é endereçado à psicanálise. É o caso, particularmente, dos sujeitos que, na multiplicação desenfreada de parceiros, sob o imperativo de um gozo permanente e imediato, se abandonam não ao destino que o inconsciente lhes traça, mas a um consumo no qual se anula toda divisão na estrita dependência corporal; a sexualidade junta-se, assim, ao regime das adições como outras tantas formas de preencher o vazio. É no acting que o sujeito se defende da vergonha.
Mas estes são também os casos em que a sexualidade é posta à distância sob a forma do casal fraterno, o duo em espelho, no qual a ilusão de fazer um é levada ao seu ápice, na evitação ou na denegação das embrulhadas do amor e do desejo.
Em certo sentido, Lacan nos dá uma leitura deste assim chamado paradoxo por meio do que ele chama, no Seminário 11, de “dessexualização”[6]. Em um contexto civilizacional, onde o ter prevalece sobre o ser, onde o objeto está no comando, os observadores contemporâneos consideram que a ordem erótica se alinha aos imperativos do mercado, de maneira, digamos, desencarnada, desafetada. Lacan nos dá uma outra leitura, menos simplista, elucidando mais precisamente o que se produz, quando os objetos da realidade têm precedência sobre a causa íntima do sujeito. A propósito do objeto oral, ele indica que a zona erotizada só é válida para a satisfação pulsional se outras zonas, dessexualizadas, forem excluídas. Mas o que acontece no movimento inverso, quando é o próprio objeto sexual, o parceiro, que se evade rumo à vertente da realidade? O sujeito, nos diz Lacan, entra, então, em uma zona de queda chamada de função da realidade. A realidade sobrepõe-se ao real pulsional, a carne sobrepõe-se ao corpo. Não podemos ver nisso uma chave de leitura do desencanto, ou do cinismo contemporâneo, no que concerne ao sexual?
O restante da pesquisa ressalta até que ponto a questão do atentado sexual ocupa aqui um lugar preponderante: foi dado um passo na ordem de uma cultura do contrato, notadamente para garantir o consentimento[7]. Aqui, é preciso reler “Kant com Sade”[8] para se considerar que uma sociedade do contrato, longe de ser um obstáculo, encoraja o cinismo do gozo e de novas “leis da hospitalidade”, como o swing[9].
Hoje, o imaginário da rivalidade entre homens e mulheres tende a se reduzir ao modo da confrontação, da radicalidade sem nuances. Por meio dessas reivindicações, é o regime da igualdade absoluta dos sujeitos que tem precedência sobre a diferenciação dos gozos homem e mulher, a diferenciação dos gozos simplesmente, através da ilusão de uma partilha identitária do gozo. O axioma subjacente é o da separação dos sexos, deixando cada um à sua solidão pulsional. Trata-se de desprender-se do Outro, sempre suspeito de violência,[10] da violação do ser. A dissimetria com o grande Outro é denunciada como uma relação de dominação, ali onde Lacan afirma que somente o artefato do Outro torna possível o que é da ordem do sexo, da relação sexuada[11].
Não nos enganemos, há neste separatismo não um desnudamento da não-relação, mas sim uma dessexualização que prescreve a relação sexual que seria necessária, que a faz existir numa denegação.
Isso supõe retornar ao “não há” do aforismo “não há relação sexual”. Jacques-Alain Miller o comenta assim na Conversação de Arcachon: “O ‘Não há’, de Lacan, é a página em branco, não está inscrito. Devemos distinguir a negação de uma proposição escrita da não escrita dessa proposição”[12] . J.-A. Miller propôs uma escrita para isso, representando a ausência de relação sexual simplesmente com o símbolo do conjunto vazio, e escrevendo acima dele “o sigma do sintoma”. Nesse “não há”, trata-se de uma outra falta que não a da foraclusão. O “não há relação sexual” não é um furo: é um puro “não há”. É, portanto, como “inscritível, fundável, como relação”[13] que a relação sexual não existe. Por conseguinte, teremos que interrogar, aqui, o verdadeiro valor daquilo que se escreve.
Lacan o afirma claramente em “O aturdito”: “O não há relação sexual não implica que não haja relação com o sexo.”[14] Que não haja relação sexual que seja inscritível é precisamente o que condiciona que haja relações – que haja algo da ordem do sexo -, aquelas que as ligações inconscientes revelam; essas relações que passam pelo gozo, pelo corpo e pela língua, pelo saber-fazer do inconsciente com lalíngua, em outras palavras, pelo sintoma. Ligações sempre sintomáticas, portanto. A sexualidade pode estar indo de vento em popa, mas o sexo continua sendo um sintoma. Não ficaremos quites com ele. É aí que a psicanálise joga sua partida, precisamente num tempo em que o sintoma não tem direito a um lugar nos discursos e é desinvestido pelo próprio sujeito.
Assim, na via de um Lacan conectado às avessas da vida contemporânea, este congresso terá que interrogar as consequências deste « não há » sobre os mitos modernos da vida sexual e amorosa. No tempo dos Uns sozinhos, o desejo de formar um casal ainda é atual? Quando ninguém mais acredita no programa do “cada um com sua cada uma”, o amor continua sendo uma suplência privilegiada à não relação? Quais são as outras formas de suplência reveladas pela clínica e pela prática?
Opacidade do sexual
“A sexomania invasiva é apenas um fenômeno publicitário”[15], dizia Lacan em sua entrevista à revista Panorama. É claro que ela não vai acabar com o mistério da sexualidade. De fato, por mais que ela se digitalize, como disse Éric Laurent, “[o] programa de gozo não é virtual”[16].
No Seminário: o sinthoma, é justamente o termo “opacidade sexual”[17] que chama a atenção. Todo pensamento, todo conhecimento, nos diz Lacan, deve ser reconsiderado a partir do ato sexual, a própria linguagem está relacionada ao sexo. Em uma conversação inédita da UFORCA sobre O sinthoma[18], J.-A. Miller elucidou a opacidade em questão. Aqui, ela não designa a impossibilidade do dizer sobre o desejo sexual. Ela se apresenta, antes, como uma mancha no campo visual, o sexual opacifica o campo visual, a face visível do “não há”. A referência aqui, especifica ele, não é ao enigma (registro significante), mas ao imaginário do corpo como consistência do falasser. Então, a questão a ser resolvida seria: Como é pensável que o outro falasser adore seu corpo, e não o meu?[19].
Essa perspectiva me parece fascinante, não para lançar luz sobre a opacidade, mas para aceitar que a luz nos olha, maneira de não olhar muito de perto a fim de que o mistério do sexual permaneça.
[1] Cf. Freud, S. A vida sexual dos seres humanos. (1916/1917 ) In: ___. Conferências introdutórias à psicanálise. Parte III, Conferência XX. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 16. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 366
[2] Freud, S., Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna. (1908) In: ___. “Gradiva” de Jensen e outros Trabalhos. Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 9. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.169-186.
[3] Lacan, J. Meu ensino. (1967-1968) Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2006. p. 26.
[4] INSERM, Contextes des sexualités en France, 2024. Acesso em : 15/04/2025
[5] Ibidem, p. 39.
[6] Lacan, J. O Seminário, livro 11 : Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1979. p. 147. Lição de 24/04/1964
[7] Cf. INSERM, Contextes des sexualités en France, op. cit., p. 40.
[8] Cf. Lacan, J. Kant com Sade. (1962) In: ___. Escritos. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1998. p. 776-802.
[9] N.T.: mélangisme, no original, espécie de swinging.
[10] Tal como o indica o aumento estatístico do questionamento declarado da escolha heterssexual : para melhor se precaver das agressões. Cf. INSERM, Contextes des sexualités en France, op. cit., p. 40.
[11] Cf. Lacan, J. O Seminário, livro 18 : De um discurso que não fosse semblante. (1971) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. p. 123.
[12] Cf. Miller, J.-A. La Conversation d’Arcachon. Cas rares. Les inclassables de la clinique. Paris: Agalma Ed., 1997. p. 260.
[13] Lacan, J. (1971) , op. cit.,p. 122. Lição de 19/05/1971.
[14] Lacan, J. O Aturdito (1972) In: ___. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 464.
[15] Lacan, J. « Entretien au magazine Panorama », La Cause du désir, n° 88, octobre 2014. p. 173.
[16] Laurent, É. « Le programme de jouissance n’est pas virtuel », La Cause freudienne, n° 73, décembre 2009. p. 42-49.
[17] Lacan, J. O Seminário, livro 23 : O sinthoma. (1975-1976) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 64. Lição de 13/01/1976.
[18] Intervenção proferida por Jacques-Alain Miller durante as Jornadas UFORCA, nos dias 21 e 22 de maio de 2011, tendo por título : « Le parlement de Montpellier, Autour du Séminaire XXIII » ( Inédito).
[19] Ibid.