Preâmbulo
No dia 21 de junho de 1964, reafirmando ao mesmo tempo a validade da experiência psicanalítica e a necessidade de nela restabelecer o princípio freudiano na teoria e na prática, Jacques Lacan introduzia simultaneamente a noção de uma forma associativa até então inédita: em vez da Sociedade, que se tornou tradicional, baseada no reconhecimento mútuo dos didatas, ele propunha a Escola, cujos membros encontrariam no reconhecimento de um não-saber irredutível – S(⒜) – que é o próprio inconsciente, a força de prosseguir um trabalho de elaboração orientado pelo desejo de uma invenção de saber e de sua transmissão integral, o que Lacan mais tarde chamaria de matema. Com esse fundamento insondável, cobrindo-o com seu nome próprio, ele estabelecia sua Escola e convocava à reconquista do Campo Freudiano.
“O apelo de Lacan ressoou para além da dissolução da Escola que ele havia fundado – ressoou para além da sua morte, ocorrida em 9 de setembro de 1981 – ressoou longe de Paris, onde ele vivera e trabalhara”.
Assim se expressava, no dia 01 de fevereiro de 1992, o texto do Pacto de Paris, redigido no momento em que a Escola da Causa Freudiana, a Escola do Campo Freudiano de Caracas, a Escola Europeia de Psicanálise do Campo Freudiano e a Escola da Orientação Lacaniana do Campo Freudiano decidiam convergir para a Associação Mundial de Psicanálise que acabara de ser fundada por Jacques-Alain Miller.
Hoje – quando há vinte anos os Encontros do Campo Freudiano escandem e relançam regularmente a vida de uma comunidade internacional que elas eminentemente contribuíram para fazer existir; após oito anos ativos e laboriosos no seio da AMP; ao sair de uma crise atravessada e superada em comum; e uma vez que duas Escolas nacionais estavam em gestação na Espanha e na Itália –, era chegado o momento do passo seguinte: a fundação do que já encontrou um nome, a Escola Uma da AMP. Por iniciativa de Ricardo Nepomiachi, o Conselho da EOL, com sede em Buenos Aires, adotou um projeto de declaração ao qual propôs inscrever todo membro da AMP que pretendesse se tornar, após a aprovação do Conselho da Associação Mundial, membro da Escola Uma. O Conselho da AMP, reunido em Paris no dia 22 de janeiro de 2000, encampou essa iniciativa e decidiu apresentá-la à discussão dos membros da Associação Mundial, no âmbito de suas Escolas, o texto a seguir, inspirado no projeto da EOL.
Declaração
No curso dos vinte anos transcorridos desde o primeiro Encontro Internacional do Campo Freudiano convocado para Caracas, com a presença de Jacques Lacan, uma comunidade internacional multilíngüe tomou forma e consistência.
Se seus membros distribuem-se em várias Escolas que estão no âmbito natural de seu trabalho cotidiano, eles se sentem, certamente também, como pares de um mesmo conjunto, partilhando as mesmas referências e o mesmo destino na psicanálise, constituindo um único e mesmo movimento mundial, cuja vitalidade demonstra que o voto da International Psycho-Analytical Association que quis calar a descendência analítica de Jacques Lacan, ao pronunciar sua excomunhão, não se cumpriu.
Vários membros da IPA, sobretudo na América Latina, optaram pela recuperação da obra de Jacques Lacan, mas ao preço de dissolver-lhe o alcance e amputá-la de suas conseqüências na prática e na instituição. Com efeito, por ignorar tudo quanto à disciplina do matema, por reverenciar apenas aquela do standard, o que foi a casa de Freud tornou-se um albergue que acolhe múltiplos monólogos, indiferentes uns com relação aos outros e que se neutralizam. O conjunto se mantém pelo efeito conjugado de uma tradição histórica e de uma regulação quantitativa, totalmente formal e exterior, um rito que, aliás, cada vez menos respeitado, que vem duplicar a justaposição emoliente dos “pontos de vista pessoais”.
Em compensação, a mais jovem comunidade reunida na AMP é animada por uma orientação concreta, que controla e veicula uma Conversação permanente. Ela avalia que deu provas disso. Ela confia em sua estrela. E, embora ela esteja ainda em sua forma incoativa, ela deve decidir a admitir como um fato que lhe cabe uma tarefa: aquela de trilhar na psicanálise a única via alternativa que é efetiva.
Com este fim, e neste começo do novo século, os signatários, membros da Associação Mundial se reconhecem como companheiros de uma mesma causa e declaram que se constituem como uma Escola Una.
Una, apesar da diversidade das línguas e das tradições culturais. Una, malgrado as distâncias geográficas.
Una, no sentido contrário à tendência natural ao distanciamento, à divergência, à fragmentação.
Una, mas sem o enfado que se vincula à homogeneidade do Um, pois plural e não-standard.
Escola que tem seus AE, cujo passe é verificado pelo mesmo dispositivo que opera em cada uma das Escolas, segundo procedimentos homólogos.
Escola que tem seus AME, praticantes que deram provas de formação suficiente e cuja nomeação deverá, em breve, encontrar um procedimento melhor definido.
Escola cujos membros não procuram na sociedade nenhum privilégio de extraterritorialidade, mas que agem na vida cotidiana e na vida intelectual de seu tempo, para fazer passar o que, da política lacaniana, é susceptível de se transmitir a todos e de ter uma incidência real.
Porque aqui está uma Escola que não pretende “depor as armas contra os impasses crescentes da civilização”.
Esta Escola é uma experiência.
Com efeito, o “Ato de Fundação” de 1964 inaugurava uma instituição propriamente psicanalítica no que ela oferece, ao trabalho da transferência, que sustenta o tratamento, a continuidade da transferência de trabalho. A Escola, por isto, pode pretender, legitimamente, o estatuto de experiência subjetiva. É essa experiência, que se prossegue nas diferentes Escolas fundadas durante esses vinte anos, que se declara, hoje, sob uma terceira forma: a Escola Una, transnacional e translinguística.
Experiência jamais feita, até então, de uma Escola sem fronteiras e, entretanto, experiência que já estava aí, esboçada, antes de sua ex-sistência ser declarada. Indissoluvelmente, experiência de transferência e experiência de trabalho que deverá, de acordo com a proposição de Lacan, ser analisada (seus AE estão aí para isso), ao modo de um tratamento, e ser interpretada, e ser dirigida.
Sabemos que o empreendimento desta Escola, Escola da Orientação Lacaniana na escala mundial, é inaudito. Ela parece impossível. Ela não está menos ao nosso alcance.
Para vencer, ou para “falhar da melhor maneira”, ela vai se basear sobre a lógica que a atravessa: esta, êxtima para cada um a um, determinará o “work in progress” de todos para dar à luz a uma verdadeira comunidade analítica integrada.
No começo de um novo século, o segundo século da psicanálise, esta Escola terá sua política, a ser ainda aprofundada.
Buenos Aires-Paris, no dia 22 de janeiro 2000.
Texto adotado no dia 14 de julho de 2000, em Buenos Aires.
[Versão em português: texto extraído de Anuário e textos estatutários – 2008-2009, Escola Brasileira de Psicanálise].